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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Contos Urbanos _Inconsequentes

Contos Urbanos nr.3_”Inconsequentes!”

De Mara Assumpção

 

Não se fala em outra coisa: Covid, vacinas, distanciamento social. Não aglomere!

Confesso que estava farto disso tudo!

Minha academia ficou fechada por muito tempo, meu futebol semanal, impedido por meses interruptos. Comemorar aniversário? Nem pensar!

Amigos concluíram a graduação, e tiveram colação de grau em gabinete... Eu estava cansado!

Também fiquei um pouco confuso: não sabia no que acreditar, em quem confiar!

Nossos governantes e políticos pareciam perdidos! Alertavam-nos para ficar em casa, mas todos eles estiveram nas ruas, fazendo campanha (e aglomerações) para as eleições municipais de 2020!

Transporte público? Lotados!

Então, eu não levei muito a sério essa história de usar máscara, evitar aglomerações, distanciamento social! Atendia os protocolos, somente quando era obrigado!

Além de tudo, tenho 27 anos, sou jovem, saudável, faço natação e academia, jogo futebol toda semana, corpo atlético, e não corria o risco de contaminar pessoas vulneráveis, dos grupos de risco. Divido o aluguel do apartamento em que moro com um colega de trabalho!

No final do ano, eu sabia que a contaminação estava aumentando, mas em nenhum momento me senti em perigo.

Essa peste estava bem longe de mim! Até que um dia, fiquei sabendo dos avós de um amigo de infância que haviam sido contaminados e estavam hospitalizados. Fiquei chateado!

Pandemia dos infernos!

Esse meu amigo acabou perdendo o avô, e semanas depois, a avó. Mais de quarenta dias de UTI, e acabaram não resistindo. Dez dias entre uma perda e outra. E nem puderam fazer um funeral decente! Que tristeza!

Esse vírus é cruel e agressivo, covarde para com os idosos! Era o meu pensamento e da grande maioria da minha geração!

As semanas foram passando, a evolução da pandemia no meu estado estabilizando, o medo do desconhecido reduzido, as restrições de circulação afrouxando!

Pude voltar para a academia, uma cerveja com os amigos no final do expediente.

Continuava a recomendação para se evitar as aglomerações; mas um churrasquinho depois do futebol... Nada demais, umas vinte pessoas no máximo!

Ano novo, verão, férias...

Quase esqueci que vivíamos uma pandemia; já estava costumado ao nosso novo normal.

Até o dia em que fiquei sabendo que minha irmã estava com Covid!

Foi a primeira vez que tive medo, pela saúde dos meus pais.

Minha irmã ainda morava com eles; ambos cinquentões, meu pai cardiopata, minha mãe, asmática.

Felizmente, ninguém precisou ser hospitalizado. Apenas sintomas gripais! Passou...

Achei que a mídia estava aumentando o tamanho do “bicho”. Relaxei!

As vacinas estavam chegando, minha família estava curada, e eu acreditava, imunizada.


Férias e carnaval. Fui convidado a dividir o aluguel de uma casa na praia.

Muita bebida, música, praia, festas!

Esquecemos que havia uma pandemia: nenhum protocolo de prevenção.

A casa era dividida por um grupo de dez pessoas. Só diversão!

Quanta irresponsabilidade! Fomos inconsequentes...

Três dias antes do nosso retorno, uma de nossas amigas começou a sentir indisposta: dor de cabeça, alguma tosse e cansaço. Achou que estava gripada!

Na véspera do nosso retorno, o alarme soou!  Nossa amiga acordou febril, e suas companheiras de quarto, começaram a apresentar sintomas semelhantes!

Resolvemos todos fazer o teste do Covid numa farmácia! Éramos dez, oito positivaram!

Voltamos para casa naquela mesma tarde; nossa amiga foi direto para uma Emergência.

Eu estava entre os positivados, mas até o dia seguinte, sem qualquer sintoma!

Acreditei ser assintomático, afinal sou jovem!

Porém, no dia seguinte, o pior aconteceu: dor de cabeça e garganta, tosse e um cansaço associado a dores no corpo! Do nada, comecei a me sentir muito mal.

Não quis assustar minha família, avisei por “whatsapp” que estava com Covid, mas que eram apenas sintomas gripais.

Passei aquele dia na cama, não tinha fome; só um total desânimo; mas a noite apareceu febre e a falta de ar!

Foi uma noite terrível: nunca me senti tão mal! Não conseguia respirar direito!

Meu amigo, com quem eu dividia o apartamento, também positivado, estava assintomático e foi quem me levou para um hospital.

Lotado! Emergência fechada, não podiam receber novos pacientes!

Fomos encaminhados para uma Unidade de Pronto Atendimento, que também estava transbordando de gente! Mas como eu estava muito febril e com bastante falta de ar, fizeram o meu atendimento.

Agora, estou aqui a gravar esse áudio; respiro com dificuldade, mas preciso alertá-los!

Continuo na UPA, num leito na emergência, esperando os resultados de uma tomografia pulmonar. Já entrei na lista de espera por um leito hospitalar, já me disseram que meu caso é grave, talvez caso de UTI! 

Não quero ir para uma UTI! Estou com medo!

Será que conseguirei um leito de UTI? Tenho convênio, mas está tudo lotado!

Por favor, se cuidem! Não sejam inconsequentes como eu fui!

Esta me faltando o ar....

SOCORRO!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

 Contos de Areia_nº3

                                                   A Senhora das Águas

                                     Mara Assumpção

Era final de janeiro, e Janaína, em férias, estava de volta a sua cidade natal, uma pequena cidade litorânea no sul do país. Fazia quase sete anos que não via sua vó paterna, agora com mais de 80, uma senhora desde sempre muito religiosa e devota de Iemanjá. Coincidência ou não, o dia da Senhora das Águas seria dali a quatro dias, e Janaína estaria na cidade e presenciaria as festividades e homenagens a Rainha do Mar!

Em sua cidade, independente de religião, quase a totalidade dos moradores eram devotos da entidade associada ao mar: Iemanjá, N. Sra. dos Navegantes, Marabô, Sereia do Mar, Iara; nomes diversos que retratavam a mesma divindade.

Seu próprio nome, Janaína, era uma homenagem a ela, a Senhora das Águas. Conforme haviam lhe contado, uma promessa feita pela sua mãe e avó paterna, quando pouco antes do seu nascimento, o barco pesqueiro em que seu pai era o mestre comandante, ficou à deriva em alto mar por sete dias, após uma tempestade inesperada.  Quando todas as esperanças de encontra-los já estavam esgotadas, eis que um navio petroleiro os resgata, a milhas de distância. Todos marinheiros/pescadores estavam vivos. Debilitados, mas vivos!  

Foi considerado um milagre e um grande acontecimento na cidade: teve festa, missa, culto, procissão pelas ruas com a imagem da santa, oferendas a beira mar! Iemanjá, a Rainha do Mar e protetora dos pescadores os havia auxiliado e salvado; e o povo, independente de religião, festejou e agradeceu o grande acontecimento!

Contam que, passados cinco dias do desaparecimento do barco, sua vó, angustiada ante a perda iminente do seu filho caçula, avisa sua nora, grávida de 8 meses, que precisava ir à beira mar, à noite. Precisava orar e pedir a intervenção de Iemanjá na causa. A mãe de Janaína, quisera acompanha-la, mas devido a gravidez adiantada, foi convencida a não o faze-lo.

- É melhor não, minha cara! Seu estado não recomenda caminhar na areia, à noite!

- Deixe comigo! Iemanjá, mãe de todas as mães, vai entender tua ausência! Escreva um bilhete a ela, conte de tua aflição e peça que ela traga de volta o pai da tua filha que está prestes a nascer! Ela há de nos ouvir e atender!

- Ah dona Ieda, eu queria ter tanto sua certeza! – responde a nora com a voz embargada pelo choro retido.

- Fé minha cara! Minha certeza se chama fé!

- As pessoas com fé também morrem, ficam doentes, se afogam... – completou a jovem gestante, cheia de angústia e medo.

A senhora pegou as mãos da nora entre as suas, deu-lhe um beijo na testa, e disse:

- Meu coração de mãe me diz que meu filho está vivo! Sei disso, eu sei que meu filho está vivo, e só precisa encontrar o caminho de volta! Iemanjá precisa intervir e ajudá-los! Venha, me ajude a arrumar nossa oferenda. Firme seu pensamento naquilo que pedimos e tanto queremos! Não deixe que o medo paralise sua alma! Vamos colocar sua carta dentro do barco, junto com os presentes...

Ficaram em silêncio até que a jovem grávida se acalmasse. Por fim, a senhora disse:

- Faça seu pedido, e já se comprometa a honra-la em agradecimento!

- Honrá-la? Como? Oferendas em seu dia?

A senhora olhou para a nora, contrariada.

- Isso a gente faz todos os anos!  Estamos vivendo uma situação especial! Vamos prometer que caso nosso Igor retorne do mar, sua filha que em breve estará em nossos braços será a lembrança viva da grande graça alcançada!

- Não entendi!

- O nome da menina! Coloque um nome em homenagem a grande mãe!

- Mas a menina vai se chamar Lara! Igor e eu já escolhemos o nome!

- Bom, você que sabe! Acredito que uma grande graça, pede uma grande honra!

A jovem grávida ficou pensativa. Não falaram mais no assunto.

Durante a tarde, as duas preparam a oferenda que fariam a Iemanjá: rosas brancas, velas azuis, sabonetes e perfume, cocadas e a carta. Todas as oferendas colocadas num pequeno barco azul e branco, feito de isopor, que foi solto no mar, perto da meia noite, naquele mesmo dia.

No final do dia seguinte, para alegria e alívio de todos, chegou a notícia de que na manhã daquele dia, o barco de pesca havia sido resgatado em alto mar e que todos estavam bem.  

Quando a menina nasceu, Igor e sua esposa não tiveram a menor dúvida no nome: Janaína! Todos na família tinham a convicção de que foram as preces e a fé da dona Ieda, que sensibilizaram Iemanjá, a Senhora das Águas.

Todos, menos Janaína.

A menina cresceu ouvindo essa história. Cresceu participando das oferendas e festas a beira mar em homenagem a Rainha do Mar! Mas para desespero de seus pais, e principalmente de dona Ieda, quando adulta ela foi clara e transparente em suas afirmações: ela não acreditava numa divindade do mar, não acreditava em santos e orixás, tinha até mesmo dúvida a respeito de Deus!

Agora, ali estava ela, sozinha e sentada a beira mar relembrando a história que lhe fora contada, sobre seu próprio nome, que por sinal não gostava, passados já 29 anos!

Ao voltar para casa, sua vó lhe recebeu com um doce sorriso, dizendo:

- Estou tão feliz que você estará conosco nas homenagens à Senhora das Águas, depois de tanto tempo...

Janaína ficou surpresa com a afirmação da vó, pois em nenhum momento falou qualquer coisa a respeito. Na verdade, não pretendia comparecer aqueles rituais que considerava arcaicos, fora de propósito.

– Minha vó, quem lhe disse isso? Não pretendo ir à beira mar!  A senhora bem sabe que não consigo apreciar essas festas!

A velha senhora nada disse, retirou-se em silêncio. Janaína ficou pensativa, tentando se convencer que não era obrigada ir a um evento que lhe desagradava. Por fim, sem conseguir ficar em paz consigo mesmo, foi atrás da Vó.

- Minha vó, tente me entender! Eu não acredito que exista uma divindade, uma santa responsável pelo mar... E mesmo que exista, como pode um ser evoluído e iluminado como se espera que seja tal entidade, vá querer receber coisas do mundo dos homens, como velas, cocadas, perfumes, rosas...Não consigo acreditar nisso!

- Sinto muito! Para mim tudo isso é pura bobagem, crendice da cabeça das pessoas! – completou Janaína

A vó olhou para ela contrariada, e com toda ternura e paciência das avós, disse:

 - Janaína, minha querida! Essas oferendas todas que a gente faz, não é por pedido ou necessidade dos nossos orixás, guias e benfeitores! Óbvio que não! São energias cósmicas, seres de luz, espíritos evoluídos!

- Então, a troco de que todas essas oferendas? Só para sujar a praia?

- Janaína, todas essas oferendas é para que possamos de alguma forma materializar nossa fé! A maioria das pessoas não consegue mentalizar e firmar o pensamento em suas preces, sua conversa com o Cosmos, com o Mundo Maior! Toda a ritualística, inclusive os pontos que cantamos é para que a corrente se forme firme, numa mesma vibração. Não existe pessoas que entoam mantras para fazer meditação? Então, a finalidade é a mesma ...

- Hummm.... – Murmurou a jovem, ainda não totalmente convencida.

- E quer saber, minha neta? Nós entregamos nossas oferendas ao mar, uma vez por ano, sem plástico, sem papel, sem vidro. Só o isopor do barco...O que sujamos é muito menos que a sujeira toda, deixada pelo povo, todos finais de semana: latinhas, garrafas pets, garrafas de cerveja, canudinhos e baganas de cigarros, etc...

Janaína ficou calada, sem saber como responder. Por fim, disse:

- A senhora me convenceu minha vó! Vou assistir a festa a beira mar, se isso lhe faz feliz!

Dona Ieda não escondeu seu contentamento: deu um abraço afetuoso na neta.

- Você não tem ideia de como me faz feliz, minha neta!

No final do dia, vestindo branco como a ocasião exigia, Janaína se dirigiu para o local onde as festividades aconteceriam. Era uma festa de fé, de todas as crenças e religiões. Toda a doca estava enfeitada com bandeiras azuis, havia barracas vendendo de tudo desde comida, bebida até velas e santinhos com a imagem da divindade.

Uma brincadeira lhe chamou atenção: duas rodas enormes de crianças, todas vestindo branco e azul.  As rodas se intercalavam nas canções infantis, mas após cada frase, havia um coro uno que gritava “Sereia”!! Era lindo de assistir, e Janaína ficou emocionada.

Perto da meia-noite, se dirigiu para a praia, onde haveria os rituais das religiões afro-brasileiras. Avistou sua vó, pais, tios e primos; todos estavam participando.

Acompanhava tudo de longe, atenta ao som dos atabaques que pareciam estar em sintonia com o barulho do mar, a lua crescente, quase cheia, refletia seu brilho no mar, num espetáculo lindo. Sentiu uma vontade enorme de participar da grande roda e sem pensar dirigiu-se até onde todos cantavam, batiam palmas e cantavam. Quando percebeu, cantava junto:

“Hoje, hoje eu vou cantar, vou louvar na areia, em lua cheia minha mãe Iemanjá...Rosa do Mar, minha estrela do céu azul...Não é história de um pescador, que meu amor eu vou lhe entregar...”

E sem perceber, entrou no grande círculo. E dançou...

O batuque soou mais alto, todos batiam palmas e cantavam a toda voz, e ela girava e dançava. Dançava lindo, com seus cabelos esvoaçantes, dançava e dançava, e um frenesi tomou conta de todos. A dança de Janaína era pura energia e contagiava a todos. Quando por fim, os atabaques pararam, as pessoas começaram e ir em direção aos seus barcos oferendas, para entrega-los ao mar.

Janaína se dirigiu ao mar, e ainda em transe entrou. Foi quando uma enorme onda arrebentou encima dela, derrubando-a, e veio outra e mais outra, não permitindo que ela ficasse em pé. Foi quando sentiu duas mãos fortes a lhe levantar: era seu pai. Não estava no fundo, estava se afogando na areia... Quando de pé, respirou fundo, seu pai tirou os cabelos molhados do seu rosto e lhe deu um beijo na testa.  Já estavam saindo do mar, quando Janaína virou-se, e então a viu: uma onda gigantesca! Mas não era uma onda comum, além de sua grandiosidade, trazia o reflexo de um corpo de mulher, efeito do luar nas águas do mar. O efeito se repetia na espuma branca da crista daquela onda:  parecia uma vasta cabeleira, ornada com duas rosas – recém ofertadas por algum devoto. Janaína ficou paralisada, perplexa diante do que via! E então percebeu que seu pai também a via.

Sim, era ela, a Senhora das Águas, que se mostrava de forma magnífica.  

Seu pai se ajoelhou e disse:

- Salve Odoyá, minha mãe e protetora!

A onda chegou onde eles estavam e mais uma vez derrubou Janaína.

Desta vez, Janaína levantou-se sozinha. Olhou a volta, e pareceu-lhe que todos assistiam o ocorrido. E sem pensar, levada pela emoção que tomava conta do seu ser, dominada por um grandioso sentimento de felicidade, Janaína abriu os braços e trouxe água do mar para se rosto. Fez isso repetidas vezes, radiante de felicidade, brincando feito criança, gritando:

- Salve Odoyá! Salve Odoyá, minha mãe!

E todos responderam em coro:

- Odoyá!

*****