Contos de
Areia_nº3
A Senhora das Águas
Mara
Assumpção
Era
final de janeiro, e Janaína, em férias, estava de volta a sua cidade natal, uma
pequena cidade litorânea no sul do país. Fazia quase sete anos que não via sua
vó paterna, agora com mais de 80, uma senhora desde sempre muito religiosa e
devota de Iemanjá. Coincidência ou não, o dia da Senhora das Águas seria dali a
quatro dias, e Janaína estaria na cidade e presenciaria as festividades e
homenagens a Rainha do Mar!
Em
sua cidade, independente de religião, quase a totalidade dos moradores eram
devotos da entidade associada ao mar: Iemanjá, N. Sra. dos Navegantes, Marabô,
Sereia do Mar, Iara; nomes diversos que retratavam a mesma divindade.
Seu
próprio nome, Janaína, era uma homenagem a ela, a Senhora das Águas. Conforme
haviam lhe contado, uma promessa feita pela sua mãe e avó paterna, quando pouco
antes do seu nascimento, o barco pesqueiro em que seu pai era o mestre
comandante, ficou à deriva em alto mar por sete dias, após uma tempestade
inesperada. Quando todas as esperanças
de encontra-los já estavam esgotadas, eis que um navio petroleiro os resgata, a
milhas de distância. Todos marinheiros/pescadores estavam vivos. Debilitados,
mas vivos!
Foi
considerado um milagre e um grande acontecimento na cidade: teve festa, missa, culto,
procissão pelas ruas com a imagem da santa, oferendas a beira mar! Iemanjá, a
Rainha do Mar e protetora dos pescadores os havia auxiliado e salvado; e o
povo, independente de religião, festejou e agradeceu o grande acontecimento!
Contam
que, passados cinco dias do desaparecimento do barco, sua vó, angustiada ante a
perda iminente do seu filho caçula, avisa sua nora, grávida de 8 meses, que
precisava ir à beira mar, à noite. Precisava orar e pedir a intervenção de
Iemanjá na causa. A mãe de Janaína, quisera acompanha-la, mas devido a gravidez
adiantada, foi convencida a não o faze-lo.
-
É melhor não, minha cara! Seu estado não recomenda caminhar na areia, à noite!
-
Deixe comigo! Iemanjá, mãe de todas as mães, vai entender tua ausência! Escreva
um bilhete a ela, conte de tua aflição e peça que ela traga de volta o pai da
tua filha que está prestes a nascer! Ela há de nos ouvir e atender!
-
Ah dona Ieda, eu queria ter tanto sua certeza! – responde a nora com a voz
embargada pelo choro retido.
-
Fé minha cara! Minha certeza se chama fé!
-
As pessoas com fé também morrem, ficam doentes, se afogam... – completou a
jovem gestante, cheia de angústia e medo.
A
senhora pegou as mãos da nora entre as suas, deu-lhe um beijo na testa, e
disse:
-
Meu coração de mãe me diz que meu filho está vivo! Sei disso, eu sei que meu
filho está vivo, e só precisa encontrar o caminho de volta! Iemanjá precisa
intervir e ajudá-los! Venha, me ajude a arrumar nossa oferenda. Firme seu
pensamento naquilo que pedimos e tanto queremos! Não deixe que o medo paralise
sua alma! Vamos colocar sua carta dentro do barco, junto com os presentes...
Ficaram
em silêncio até que a jovem grávida se acalmasse. Por fim, a senhora disse:
-
Faça seu pedido, e já se comprometa a honra-la em agradecimento!
-
Honrá-la? Como? Oferendas em seu dia?
A
senhora olhou para a nora, contrariada.
-
Isso a gente faz todos os anos! Estamos
vivendo uma situação especial! Vamos prometer que caso nosso Igor retorne do
mar, sua filha que em breve estará em nossos braços será a lembrança viva da
grande graça alcançada!
-
Não entendi!
-
O nome da menina! Coloque um nome em homenagem a grande mãe!
-
Mas a menina vai se chamar Lara! Igor e eu já escolhemos o nome!
-
Bom, você que sabe! Acredito que uma grande graça, pede uma grande honra!
A
jovem grávida ficou pensativa. Não falaram mais no assunto.
Durante
a tarde, as duas preparam a oferenda que fariam a Iemanjá: rosas brancas, velas
azuis, sabonetes e perfume, cocadas e a carta. Todas as oferendas colocadas num
pequeno barco azul e branco, feito de isopor, que foi solto no mar, perto da
meia noite, naquele mesmo dia.
No
final do dia seguinte, para alegria e alívio de todos, chegou a notícia de que
na manhã daquele dia, o barco de pesca havia sido resgatado em alto mar e que
todos estavam bem.
Quando
a menina nasceu, Igor e sua esposa não tiveram a menor dúvida no nome: Janaína!
Todos na família tinham a convicção de que foram as preces e a fé da dona Ieda,
que sensibilizaram Iemanjá, a Senhora das Águas.
Todos,
menos Janaína.
A
menina cresceu ouvindo essa história. Cresceu participando das oferendas e
festas a beira mar em homenagem a Rainha do Mar! Mas para desespero de seus
pais, e principalmente de dona Ieda, quando adulta ela foi clara e transparente
em suas afirmações: ela não acreditava numa divindade do mar, não acreditava em
santos e orixás, tinha até mesmo dúvida a respeito de Deus!
Agora,
ali estava ela, sozinha e sentada a beira mar relembrando a história que lhe
fora contada, sobre seu próprio nome, que por sinal não gostava, passados já 29
anos!
Ao
voltar para casa, sua vó lhe recebeu com um doce sorriso, dizendo:
-
Estou tão feliz que você estará conosco nas homenagens à Senhora das Águas,
depois de tanto tempo...
Janaína
ficou surpresa com a afirmação da vó, pois em nenhum momento falou qualquer
coisa a respeito. Na verdade, não pretendia comparecer aqueles rituais que
considerava arcaicos, fora de propósito.
–
Minha vó, quem lhe disse isso? Não pretendo ir à beira mar! A senhora bem sabe que não consigo apreciar
essas festas!
A
velha senhora nada disse, retirou-se em silêncio. Janaína ficou pensativa,
tentando se convencer que não era obrigada ir a um evento que lhe desagradava.
Por fim, sem conseguir ficar em paz consigo mesmo, foi atrás da Vó.
-
Minha vó, tente me entender! Eu não acredito que exista uma divindade, uma
santa responsável pelo mar... E mesmo que exista, como pode um ser evoluído e
iluminado como se espera que seja tal entidade, vá querer receber coisas do
mundo dos homens, como velas, cocadas, perfumes, rosas...Não consigo acreditar
nisso!
-
Sinto muito! Para mim tudo isso é pura bobagem, crendice da cabeça das pessoas!
– completou Janaína
A
vó olhou para ela contrariada, e com toda ternura e paciência das avós, disse:
- Janaína, minha querida! Essas oferendas
todas que a gente faz, não é por pedido ou necessidade dos nossos orixás, guias
e benfeitores! Óbvio que não! São energias cósmicas, seres de luz, espíritos
evoluídos!
-
Então, a troco de que todas essas oferendas? Só para sujar a praia?
-
Janaína, todas essas oferendas é para que possamos de alguma forma materializar
nossa fé! A maioria das pessoas não consegue mentalizar e firmar o pensamento
em suas preces, sua conversa com o Cosmos, com o Mundo Maior! Toda a
ritualística, inclusive os pontos que cantamos é para que a corrente se forme
firme, numa mesma vibração. Não existe pessoas que entoam mantras para fazer
meditação? Então, a finalidade é a mesma ...
-
Hummm.... – Murmurou a jovem, ainda não totalmente convencida.
-
E quer saber, minha neta? Nós entregamos nossas oferendas ao mar, uma vez por
ano, sem plástico, sem papel, sem vidro. Só o isopor do barco...O que sujamos é
muito menos que a sujeira toda, deixada pelo povo, todos finais de semana:
latinhas, garrafas pets, garrafas de cerveja, canudinhos e baganas de cigarros,
etc...
Janaína
ficou calada, sem saber como responder. Por fim, disse:
-
A senhora me convenceu minha vó! Vou assistir a festa a beira mar, se isso lhe
faz feliz!
Dona
Ieda não escondeu seu contentamento: deu um abraço afetuoso na neta.
-
Você não tem ideia de como me faz feliz, minha neta!
No
final do dia, vestindo branco como a ocasião exigia, Janaína se dirigiu para o
local onde as festividades aconteceriam. Era uma festa de fé, de todas as
crenças e religiões. Toda a doca estava enfeitada com bandeiras azuis, havia
barracas vendendo de tudo desde comida, bebida até velas e santinhos com a
imagem da divindade.
Uma
brincadeira lhe chamou atenção: duas rodas enormes de crianças, todas vestindo
branco e azul. As rodas se intercalavam
nas canções infantis, mas após cada frase, havia um coro uno que gritava
“Sereia”!! Era lindo de assistir, e Janaína ficou emocionada.
Perto
da meia-noite, se dirigiu para a praia, onde haveria os rituais das religiões
afro-brasileiras. Avistou sua vó, pais, tios e primos; todos estavam
participando.
Acompanhava
tudo de longe, atenta ao som dos atabaques que pareciam estar em sintonia com o
barulho do mar, a lua crescente, quase cheia, refletia seu brilho no mar, num espetáculo
lindo. Sentiu uma vontade enorme de participar da grande roda e sem pensar
dirigiu-se até onde todos cantavam, batiam palmas e cantavam. Quando percebeu,
cantava junto:
“Hoje,
hoje eu vou cantar, vou louvar na areia, em lua cheia minha mãe Iemanjá...Rosa
do Mar, minha estrela do céu azul...Não é história de um pescador, que meu amor
eu vou lhe entregar...”
E
sem perceber, entrou no grande círculo. E dançou...
O
batuque soou mais alto, todos batiam palmas e cantavam a toda voz, e ela girava
e dançava. Dançava lindo, com seus cabelos esvoaçantes, dançava e dançava, e um
frenesi tomou conta de todos. A dança de Janaína era pura energia e contagiava
a todos. Quando por fim, os atabaques pararam, as pessoas começaram e ir em
direção aos seus barcos oferendas, para entrega-los ao mar.
Janaína
se dirigiu ao mar, e ainda em transe entrou. Foi quando uma enorme onda
arrebentou encima dela, derrubando-a, e veio outra e mais outra, não permitindo
que ela ficasse em pé. Foi quando sentiu duas mãos fortes a lhe levantar: era
seu pai. Não estava no fundo, estava se afogando na areia... Quando de pé,
respirou fundo, seu pai tirou os cabelos molhados do seu rosto e lhe deu um
beijo na testa. Já estavam saindo do
mar, quando Janaína virou-se, e então a viu: uma onda gigantesca! Mas não era
uma onda comum, além de sua grandiosidade, trazia o reflexo de um corpo de mulher,
efeito do luar nas águas do mar. O efeito se repetia na espuma branca da crista
daquela onda: parecia uma vasta
cabeleira, ornada com duas rosas – recém ofertadas por algum devoto. Janaína
ficou paralisada, perplexa diante do que via! E então percebeu que seu pai
também a via.
Sim,
era ela, a Senhora das Águas, que se mostrava de forma magnífica.
Seu
pai se ajoelhou e disse:
-
Salve Odoyá, minha mãe e protetora!
A
onda chegou onde eles estavam e mais uma vez derrubou Janaína.
Desta
vez, Janaína levantou-se sozinha. Olhou a volta, e pareceu-lhe que todos
assistiam o ocorrido. E sem pensar, levada pela emoção que tomava conta do seu
ser, dominada por um grandioso sentimento de felicidade, Janaína abriu os
braços e trouxe água do mar para se rosto. Fez isso repetidas vezes, radiante
de felicidade, brincando feito criança, gritando:
-
Salve Odoyá! Salve Odoyá, minha mãe!
E
todos responderam em coro:
- Odoyá!
*****