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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

 Contos de Areia_nº1

A escolha

                                     Mara Assumpção

Seu Neco era um senhor de mais de 80 anos, viúvo. Ainda hoje trazia traços do corpo atlético de sua juventude. Havia se mudado para aquele pequeno balneário do litoral gaúcho há mais de 10 anos, quando se aposentara pela Polícia Militar. Quando sua esposa faleceu devido um problema cardíaco, sua única filha lhe pediu que vendesse a casa onde morava e que retornasse para sua cidade natal.  Seu Neco recusou imediatamente. Adorava o sossego daquele lugar, que mesmo na temporada de praia se mantinha como um recanto familiar.

A filha e demais parentes não entendiam porque ele insistia em morar sozinho, longe de toda família. Mas seu Neco nem se preocupava em explicar seus motivos. Não entenderiam. Ele adorava sua vidinha pacata, no seu paraíso – era assim que ele se referia a sua prainha.

-Enquanto eu tiver saúde para fazer minha comida e cuidar das minhas coisas, sem depender de ninguém, daqui eu não saio! – costumava ele repetir a cada investida da filha para levá-lo para mais próximo.

Seu Neco apreciava sua rotina tranquila, e sentia-se feliz com o que a vida lhe proporcionava. Acordava cedo, preparava seu chimarrão – um hábito gaúcho - e sentado na varanda de sua casa, com o rádio ligado ao seu lado, lia seu jornal e, apesar das modernidades, expressão dele, não abria mão de seu jornal impresso.

Depois, por volta das 8h, com seus passos já trôpegos, caminhava até o mar, cerca de 1km de distância de sua casa. E então o momento mais prazeroso do dia: o banho de mar! Seu Neco adorava o mar!

No verão, costumava sentar-se a beira mar e tomar banho de sol, entre um mergulho e outro ou um bate-papo com os guarda-vidas.

No inverno, quase sempre o vento frio que vinha do mar lhe impedia de prolongar-se no seu passeio.

Depois retornava pelo mesmo caminho, passos lentos, mas sempre firmes. Sem pressa, um passo de cada vez.  

À tarde, por volta das 15h, nova caminhada. Esta, bem mais curta: umas três quadras entre sua casa e a padaria, onde buscava pãezinhos quentinhos para o café da tarde. Uma parada aqui, outra ali, para trocar ideias com a vizinhança, quase sempre sobre futebol, o clima e o mar.

Seu Neco também adorava as flores, em especial as orquídeas. Quando via alguma em flor nos jardins vizinhos, sem constrangimento pedia uma muda. Não era raro, pedir mais de uma vez a mesma muda, para a mesma vizinha. Sua memória já não era muito boa!

Foi nessas idas e vindas a padaria que começou a conversar com a Margo. Dia sim, o outro também se encontrava com a Margo na Padaria do Boni, e voltavam juntos pela rua, cada qual com sua sacolinha de pão.

Dona Margarida, a Margo, tinha 75 anos, e como seu Neco era viúva. Nunca tivera filhos.

- Deus não quis me fazer mãe! – era o que sempre repetia.

Vivia com uma irmã mais velha que lhe servia de companhia. Viviam brigando as duas. Dona Margarida, mais de uma vez pensou em mandar ela embora. Mas nunca teve coragem. Sabia que se o fizesse, sua irmã iria terminar num asilo qualquer. Ela tinha dois filhos que mal ligavam para ela vez que outra, e que a visitavam apenas duas vezes por ano: no aniversário e dia das mães!

Seu Neco e dona Margarida ficaram amigos. Cada dia que passava, mais amigos. E por fim, quando a primavera trouxe dias mais quentes, dona Margarida começou a lhe acompanhar todos os dias em sua caminhada até o mar. Tinham um no outro, uma companhia agradável, parceria para conversas triviais e para apreciar as pequenas felicidades que a vida nos propiciava e que o corre-corre do dia-a-dia nos impede de enxergar. Nada exigiam um do outro, compartilhavam suas manhãs com paz, alegria e serenidade.


Quando o verão chegou, seu Neco e sua Margo, já costumavam passear a beira-mar de mãos dadas, o passeio e o banho de mar ficaram mais longos, e costumavam trocar um rápido e furtivo beijinho nos lábios quando se separavam, para depois cada qual seguir o caminho de casa e aguardar a hora de comprar pão, para novo e desejado encontro.

Seu Neco e sua Margo estavam apaixonados e felizes. Era possível ver em seus olhos, no sorriso, até na alegria e gentileza das palavras, aquele encantamento e magia comum aos enamorados.

Entretanto, sua filha nunca desistia de convidá-lo a retornar para sua cidade natal, e com o passar do tempo, estava cada vez mais preocupada com a distância, o avanço da idade e o pai morando sozinho. Fim de semana sim, outro não, visitava o pai; mas às vezes sentia-se cansada em ter que viajar até o litoral.

- Ah, como seria bom se o pai concordasse em retornar para perto! – dizia ela aos demais familiares.

Num sábado em que foi visita-lo, tocou novamente no assunto:

- Pai, sabe aquela casa do senhor Raul, o açougueiro?

- Claro que sim! Adoro aquela casa...

- Pois então, aquela casa está à venda!

-Ué! Porque será? Você sabe?

- Eu estava pensando que poderíamos vender essa casa aqui da praia e comprarmos aquela para o senhor...

O pai olhou surpreso para a filha.

- Quem lhe disse que quero vender essa casa?

- Seria melhor para nós todos, o senhor morando perto de mim....

- Como eu faria minha caminhada até o mar?

- O senhor poderia fazer sua caminhada na praça, no centro da cidade.

- E o meu banho de mar?

- Bem, o senhor não poderá ter tudo ... O banho de mar seria só nas minhas férias, quando poderíamos alugar uma casa no litoral!

- E a minha namorada? Deixaria para trás? Logo agora que encontrei a parceira ideal!

- Tá ficando caduco pai? Que namorada? O senhor nunca quis ter uma namorada.

- Aí que você se engana! – respondeu ele com certo sarcasmo.

- Ok, pai! Não quer voltar pra nossa terrinha, tudo bem! Não precisa ficar inventando namorada como desculpa!

O velho senhor deu de ombros e disse:

- Muito obrigado minha filha por toda preocupação! Agradeço de coração, mas eu fico por aqui... 

- Escolho o meu banho de mar...- completou ele.

E dando a conversas por encerrada, saiu em passos trôpegos, murmurando e rindo consigo mesmo:

- ...Escolho o meu banho de mar e a minha Margo!

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